Célia Metrass – Parte 6 de 6

Célia Metrass à conversa com Mafalda Eiró-Gomes e registada por Cláudia Figueiredo em 6-7-2017 no estúdio da escola superior de comunicação social no âmbito do projecto AMOP

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— Para além de ser uma das primeiras profissionais de Relações Públicas…
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— E sobrevivente já agora.
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— E já agora. A vestir calças quando foi para a CUF em 69, também foi uma grande interventora no nosso espaço público, e ainda é. Vestir calças, janeiro de 75…
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— Ok. Começa um bocadinho antes, eu… eu tive a sorte de ter um pai… a minha mãe não, a minha mãe era exatamente o contrário, mas eu tive a sorte de ter um pai que toda a vida me disse que se os outros são capazes porque, porque que eu não hei de ser. E eu acho que que isto foi a coisa melhor que me ensinaram na vida. E portanto eu sempre achei que podia fazer tudo o que me apetecesse. Coisa… que fiz, mais ou menos. Pagando o respetivo preço, porque eu acho que essa parte é fundamental que a gente saiba, que é: pode-se fazer tudo o que se quiser. Tem um preço para pagar. Se a gente tiver consciência que sim e estiver disposto a pagar o preço, está feito. Pronto, e portanto eu tive um percurso… que é quase ridículo dizer político, mas sim, aí desde os meus 17 anos. Estive presa com 17 anos, estive… fui expulsa do liceu com 17 anos, coisas fantásticas, coisas de miúdos.
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— Ou não.
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— Não não. Não havia associação de estudantes nos liceus, era proíbido. Havia nas faculdades, mas nos liceus não havia. Portanto eu era… estudei toda a vida no Liceu Filipa de Lencastre, que era a coisa mais fechada, e mais conservadora, um liceu só de meninas, que havia…. cheio de professoras do movimento nacional feminino e outras coisas do género. E portanto eu fui a delegada da pró-associação dos estudantes do Liceu Filipa de Lencastre. Portanto participei em tudo que era manifestações, andei a fugir à polícia, fui presa. Meu pai coitado queimou papéis toda a noite antes de a polícia me buscar, eu fiquei presa com 17 anos 48 horas, coitada de mim, sabia lá o que que andava a fazer. Bom, e portanto, cheguei ao 25 de abril fantástica e toda contente. E em 75, também muito por aquilo que se passava lá fora e por aquilo que eram as Simones de Beauvoir e toda a literatura à volta da condição da mulher, e que eu fui começando a ler, eu chego ao feminismo pelo lado da política.
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— Há em Portugal a história do julgamento das três marias e das novas cartas portuguesas. E portanto eu fui lá parar. Fui lá parar e portanto sou a fundadora do MLM, que é o Movimento da Libertação das Mulheres, que nasce em 1975. Nasce em 1975, fazíamos uma coisa que era muito engraçada e muito útil, especialmente naquela altura, que eram os chamados grupos de consciencialização, que eram os grupos em que as mulheres se juntavam, grupos pequenos, normalmente na casa de uma delas, e em que as mulheres falavam das suas vidas, e dos seus problemas. E por que que isto era muito importante? Por que descobriam que não estavam sozinhas. E que aquilo que elas achavam que horror, que vergonha, ou que horror, que medo, ou só me acontece a mim, afinal não, acontecia a muita gente. E portanto esses grupos tinham… iam permitindo não só esta esta ligação, como a consciencialização, como a a politização, digamos assim, porque de facto estamos a falar de uma questão política. Como são todas as, as da nossas vidas são todas questões políticas, na minha opinião, fora os sentimentos. E portanto começamos esse percurso, esse percurso nessa altura era muito complicado, porque ao contrário daquilo que se possa imaginar, os partidos de direita obviamente que estavam contra, mas os de esquerda também. E, portanto… um dos grandes opositores e um dos grandes problemas que a gente teve foi com o Partido Comunista Português. Partido comunista português… eu lembro-me de ter ido à sede do partido comunista português, já não sei fazer o quê, pedir-lhes apoio para uma coisa qualquer, e ser recebida por uma senhora, que tinha um xaile nas costas, e que nos nos disse: já sei o que que foi, já digo, e que nos disse… que, aliás, nos disse e depois tivemos isso por escrito, que o partido estava muito ocupado com consolidar a revolução, e que portanto não tinha tempo para se meter nessas coisas das mulheres. E escreveu porque, entretanto, um dos problemas gravíssimos da situação das mulheres na altura era o problema do aborto clandestino.
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— E portanto, e aí aí nessa altura então, estamos a falar de 75, a Maria Tereza Horta, eu e a Helena Medeiros resolvemos escrever um livro sobre… retratar em várias vertentes a situação do aborto clandestino em Portugal. Foi durante muitos anos o único livro publicado, durante muitos anos até praticamente a legalização do aborto. Só que ele foi editado por uma empresa que faliu, os livros esgotaram-se, desapareceram e nunca foi reeditado porque entretanto a empresa desapareceu, chamava-se Editorial Futuro, e tinha e tinha desde o depoimento de mulheres, portanto havia uma parte na primeira pessoa… nós consultamos os partidos políticos todos para ver qual era a posição que eles tinham sobre o aborto, é aí que o partido comunista diz que… está, agora está muito ocupado em consolidar a revolução e não tem tempo para se preocupar com estas coisas. E médicos, psiquiatras… eu visitei na altura, calhou a mim porque nós dividimos o trabalho, visitei na altura o Júlio de Matos, com o professor Afonso de Albuquerque, e é das coisas que eu ainda hoje me lembro e que mais me perturba que é as alas das mulheres no Júlio de Matos. Enquanto os homens podiam sair, os homens que estavam internados no Júlio de Matos podiam vir passear cá pra fora, e ali em Alvalade sempre se viram muitos a pedir cigarros, e mal vestidos e assim, as mulheres não podiam sair porque podiam engravidar. E portanto elas não saíam e estavam enclausuradas. E portanto as marcas de unhas nas paredes era uma coisa completamente de arrepiar. E portanto escrevemos o livro do aborto, entretanto 1975 foi um ano muito emocionante. Todos os dias havia imensas coisas para fazer.
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— Havia imensas manifestações onde ir, eu dormia para aí três horas, quatro talvez. A da manhã, que era quando o marido chegava porque era diretor do Diário de Notícias e chegava à casa eu quando o ouvia meter a chave à porta dizia “ai meu Deus, já fui apanhada outra vez”, porque ficávamos à conversa, à conversa, à conversa, porque era de facto uma descoberta de muita coisa. Depois ia a correr dormir e portanto às 9 da manhã estava a trabalhar. Portanto não… acho que dormi muito pouco durante aquele ano. E foi… e foi realmente uma uma descoberta da voz, da solidariedade feminina, da… e da vida e da rua, não é. Porque até o 25 de abril a rua não era para as mulheres. Hoje em dia também não é muito, mas naquela altura não era mesmo para as mulheres. E mantive, e portanto, enfim, depois acabou 75 e aquela loucura toda. Mantive de alguma maneira… eu não fiz muitas coisas na militân… públicas na militância feminista, depois dessa fase do MLM em que fizemos manifestos, e fizemos manifestações, fizemos a célebre manifestação do Parque Eduardo VII, não é… que ainda hoje as pessoas dizem que a gente queimou soutiens. Mentira. Mais uma vez. É mentira, não queimamos soutiens nenhuns, não íamos queimar soutiensnenhuns, apanhamos uma enorme tareia, foram várias para o hospital, porque o Expresso, e a Helena Vaz da Silva, resolveu pôr uma notícia no Expresso a dizer que as feministas iam fazer striptease no Parque Eduardo VII. E portanto foi uma coisa violentíssima, quando nós chegamos ao Parque Eduardo VII vestidas de donas de casa, noivas, com as crianças, e não tinha crianças na altura, mas havia quem tivesse… o Parque Eduardo VII estava mais ou menos invadido estava mais ou menos utilizados por grupos de homens que quando perceberam que não ia haver striptease ficaram com uma raiva louca e nos agrediram. À exceção da noiva, porque…. o que é muito curioso, em que diziam: não, é uma noiva, é uma noiva, não não toquem, não toquem, é uma noiva. Era o símbolo da pureza, não é, portanto as outras todas podiam apanhar uma tareia, como aconteceu com algumas. Mas pronto, não tive, não tive… O MLM acabou, foi tomado de assalto pelas trotskistas, que faziam isso habitualmente, portanto, infiltravam-se nos movimentos e tomavam-nos e destruíam-nos por dentro. E foi o que aconteceu.
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— A UMAR é o legítimo herdeiro das feministas e tem um trabalho notável e de documentação e manteve sempre este trabalho sobre as mulheres. Eu deixei de ter uma uma militância pública, o que é que eu acho que continuei a fazer sempre? Eu sou feminista todos os dias e portanto como como uma feminista, durmo como uma feminista, converso com outras mulheres como uma feminista, converso com os homens como uma feminista, já não discuto com os homens feminismo, porque deixei-me disto há muitos anos. Acho que sim, que eles também têm problemas, mas eles que tratem deles, não sei, não quero saber, não perco meu tempo com isto, a minha preocupação são as mulheres, e sempre que tive…. e tive muitas vezes lugares de gestão e de chefia, preocupei-me em não fazer uma chefia masculina. Em fazer uma chefia de outro tipo, uma chefia de envolvimento, quer com homens, quer com mulheres, de… colaborativa, porque uma coisa que me faz muita confusão é porque… o modelo que existe, o modelo vigente é um modelo patriarcal, e é um modelo masculino, o modelo de poder é um modelo masculino, e portanto as mulheres, quando chegam a lugares de poder, na sua grande maioria infelizmente, e porque tiveram que ter um comportamento masculino para atingir, não é tiverem que ter um comportamento masculino, tiveram que ser aceites pelos homens, pelos seus pares para conseguirem lá chegar, portanto, sem o apoio deles nunca teriam chegado aos lugares de chefia. E portanto o que acontece é que quando chegam aos lugares de chefia normalmente são piores que os homens, comportam-se de uma maneira mais masculina do que os homens. E são as mulheres que põem em causa as outras mulheres. Portanto esta coisa, que é uma coisa que eu acho que os homens conseguiram, dividir as mulheres, criando nas mulheres sempre a ideia de que a outra pode ser a rival. E eu acho que isso é é coisa pior que foi que os homens fizeram às mulheres mais do que as tareias, mais do que as mortes, foi o pô-las umas contras as outras.
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— E portanto aquela coisa do dividir para reinar realmente aqui é bem patente. E muitas… não quer dizer que eu goste das mulheres todas, algumas são insuportáveis, não é… eu não sou propriamente boazinha desse ponto de vista. Mas tento, mas tento sempre, quer dizer, agora já nem tento, agora é natural, mesmo quando há coisas que me irritam muito, ou que me desgostam muito, pensar porquê. Por que é que esta mulher faz isto? O que que lhe aconteceu para ela fazer isto? E normalmente são sempre questões que têm a ver com a insegurança, que tem a ver com a mãe, tem a ver com a infância, tem a ver com uma série de coisas. Eu tenho um olhar incomparavelmente mais benevolente em relação às mulheres do que tenho em relação aos homens. Quer dizer, os homens não sei nem quero saber. Pronto. E de facto… mas, e outro aspeto que é muito complicado é, que são as mulheres que educam os filhos, não é. Portanto, os valores da sociedade patriarcal e da diferença, da diferença pejorativa, não é… porque eu não defendo que as mulheres e os homens são igual, não, não são, graças a deus não são e ainda bem que não são, e podem ser complementares e… ótimo. Mas que a diferença seja um handicap ou seja usada para a discriminação, isso não. E quem transmite estes valores às crianças, porque continuam a ser as mulheres que as educam, porque há mais professoras do que professores, as mães estão mais com elas do que os pais apesar de tudo, mesmo que tenham… porque as mulheres desdobram-se em horários de trabalho de muito mais horas que os homens e portanto são elas que também acabam mais, quando os filhos estão doentes quando essas coisas. E infelizmente são as mulheres que transmitem estes estes estes valores. Porque é uma forma de de valorização, porque…. Nos últimos anos estou muito contente porque ser feminista passou a ser moda e portanto eu acho ótimo, acho que muita gente não sabe bem o que é que está a dizer, mas passou a ser uma bandeira que as mulheres empunham com orgulho, dizer que são feministas.
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— E eu acho que isto já não é mau. Pode ser que a seguir descubram o resto. Tenho, tenho aqui como noutras áreas da minha… não é da minha, é da vida, uma preocupação de justiça muito grande e tenho muita dificuldade em… mesmo quando não dava jeito, não continuar a tentar ser justa. Portanto há coisas, há coisas que as mulheres defendem que eu tenho dificuldade em em defender. Que eu tenho dificuldade em defender. Porque acho que não se pode ter só direitos, e acho, acho que há coisas que saem muito caras. Se quiserem, é um bocadinho isso. Eu acho que quando se perde a razão o preço que se paga por isso é muito caro. E portanto no caso das mulheres, que é aquilo que mais me preocupa, há muitos comportamentos das mulheres que me incomodam profundamente, muito profundamente, porque acho que são são maus para as mulheres são… permitem que os usem como exemplo de parcialidade, de aproveitamento, e portanto fico realmente muito incomodada. Agora há muita coisa que eu acho que, quer dizer, quando há crises económicas volta sempre tudo pra trás, as primeiras que sofrem são sempre as mulheres, isto é o costume. E continua a haver discriminações, há hoje em dia muitos temas que são temas muito difíceis de ter uma fronteira do que é que está certo e o que é que não está. Hoje em dia… há muitas nuances… era mais fácil há uns anos atrás, isto sim, aquilo não. Hoje é há muitas questões como, vou dizer, why not?, como a questão da legalização da prostituição, como a questão das barrigas de aluguer ou, em Portugal, uma versão mais soft que é a maternidade de substituição… como as licenças de parto tão longas, há muitas coisas que eu acho que podem aparentemente ser uma conquista, e são coisas que as mulheres vão pagar muito caro. E que são, e que estão profundamente erradas.
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— Estão profundamente erradas porque eu acho que às tantas as pessoas já não distinguem muito bem, como é o caso da prostituição, em que aquilo que se defende é “ah, mas as prostitutas têm direito a ter segurança social, e saúde, e reformas”… sim, com certeza que sim, mas isso não não implica tornar legal uma coisa que é altamente violenta do ponto de vista do dos afetos num ser humano. E numa mulher concretamente. Porque apesar de tudo, digam o que disserem, continua a haver muito mais prostitutas mulheres do que homens. E depois há aqui todas as questões de capacidade económica, e todos os países em que a exploração é brutal, e quando realmente agora como digo é moda ser feminista e eu fico contente, mas quando há há algum tempo diziam “ah, mas já não é preciso ser feminista”. Primeiro continua a ser, em todos os anos temos uma quantidade brutal de mulheres mortas assassinadas pelos maridos, ou pelos companheiros ou por um homem qualquer da família. E por outro lado, em Portugal até a situação pode não ser muito má, mas realmente enquanto houver mulheres no mundo a serem discriminadas, violadas, mortas, apedrejadas, excisadas, porque são mulheres… realmente tem que haver feministas, realmente é fundamental haver feminismo.
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— Foi um privilégio. Muito obrigada.

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