Rui Remígio – Parte 1 de 7

Rui Remígio

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Rui Remígio nasceu em 1945 no Funchal, foi Supervisor de Áudio na Emissora Nacional (EN), na RádioDifusão Portuguesa (RDP) e Técnico de Som nos Estúdios Musicorde Lda.

Entrevistado por Filipa Subtil e Francisco Sena Santos. Registado e editado por Paulo Barbosa – Gravado a 14-12-2018 na Biblioteca/ Espaço Cultural Cinema Europa.

RR p1 de 7 aos 0M3S- RR: Eu não tinha Inglês nas minhas habilitações. Tinha feito o Inglês, sozinho, em Angola, para entrar por Instituto Industrial. Tinha média de 16, bastava 14 para entrar. Fiz de facto a História e o Inglês em Angola. Chumbei a Inglês na TAP na parte de conversação. E a Helena Isabel era operadora no Quelhas [Rua do Quelhas, onde estava situada a sede
RR p1 de 7 aos 0M33S- da Emissora Nacional, em Lisboa] e era minha amiga. Os operadores auxiliares, os operadores, vão uma parte à tropa uns porque uns morrem, outros ficam lá, outros desistem e há lugares. Tens todas as condições. E lá fui. Depois entrei. Gostaram. Apaixonei-me pelo fenómeno da rádio, do analógico. E o engraçado é que, ainda hoje, um dos módulos que ministro
RR p1 de 7 aos 1M3S- ali na ETIC, onde dou as minhas aulas, é a história da gravação sonora desde o Edison. A fita de aço e por aí fora, até aos primeiros óxidos. Saí do Quelhas e fui para São Marçal. Um dia sinto uma grande palmada nas costas e dizem “Então, menino, não dizes que tens jeito para isto. Não queres vir trabalhar para o meu estúdio em Campo de Ourique?”
RR p1 de 7 aos 1M33S- e eu morava em Campo de Ourique, era um rapazinho solteiro. E então eu vim para Campo de Ourique, às três da tarde, estava a ser gravada a música para o filme do Eusébio. Com orquestração pelo Fernando Correia Martins. De manhã tinha gravado a base rítmica e ele à tarde estava a escrever música para a secção de metais. O Vum Vum [músico angolano] é que fazia
RR p1 de 7 aos 2M1S- de Eusébio, era o artista da altura. Era conhecido pelo Pantera, tinha uma grande pantera assim na zona do cinto. Olha, a partir daí, as coisas foram evoluindo. Naquela altura, só o nosso estúdio e a Valentim de Carvalho na Rua de Campolide é que tinham oito pistas.
RR p1 de 7 aos 2M22S- Uma polegada. FSS: Pois. RR: E os artistas. Sei lá, o Jorge Machado, o Thilo Krasmann, o Pedro Osório. Os artistas – todos passaram por ali. Mas isto pode-se falar depois durante a sequência. Em duas palavras: eu adoro conversar. Foi a conversar que eu conheci a Filipa. Num grande restaurante.
RR p1 de 7 aos 3M16S- À parte disso, eu estive a pensar e queria sugerir, penso eu, há alguém que para mim tem uma importância enorme pelo trabalho que fez na rádio chamado Rafael Correia. FSS: Claro. RR: A Associação de Reformados da RDP, a qual integro, tivemos um almoço na Rua Ramalho Ortigão. Na minha mesa estava a mulher do
RR p1 de 7 aos 3M53S- Adelino Gomes. E então falávamos “O Rafael Correia está aí e tal?”. Ele evita tudo. E eu disse: a única vez que estive com ele foi em Castelo de Vide, quando o José Manuel Nunes fez uma festa para aqueles que ele entendia que eram merecedores. E o Rafael Correia foi. Mas depois, mais tarde, eu ia de férias para o Algarve, e tinha discos gravados. Deixava-os
RR p1 de 7 aos 4M32S- lá na portaria. Escrevia “Um abraço”. FSS: O Rafael é um tipo fascinante. FS: Mas ele vive em Lisboa ou no Algarve? RR: No Algarve. FSS: Julgo que ao pé de S. Brás de Alportel. FS: E há outra figura muito interessante que também vive no Algarve. A Margarida Tengarrinha. FSS: Sim, é evidente.
RR p1 de 7 aos 5M31S- FS: Tenho-a na minha lista. Mas o problema é: como vamos ao Algarve? 05:00 – 09:02 – Notas sobre a evolução audiovisual durante e após a II Guerra Mundial RR: E outro que tem a ver com outros elementos ligados à comunicação é o José Fortes. Somos colegas, damos aulas. Foi ele que me convidou para ministrar este módulo. É daqueles
RR p1 de 7 aos 6M23S- que ainda gravou em fio de aço. Tem histórias maravilhosas. FSS: O fio de aço é dos anos 40? RR: Não, foi mais cedo. Anos 20 e 30. Desenvolveu-se de tal maneira que, quando foi a última grande guerra entre 1939-45, a BSF [Border Security Force] criou a primeira fita com óxido de ferro, em 1934, e arranjou por base o milar.
RR p1 de 7 aos 6M59S- Porque o óxido, no princípio, como fita, se não tivesse a chamada durabilidade às tensões. O pára-arranca, as tensões. A fita partia-se. Cada vez que se partia, para ligar o óxido, estão a imaginar. Era para ligar com verniz. E perdia-se informação. O chamado drop out hoje em dia, a ausência de informação. Era assim. O fio de aço
RR p1 de 7 aos 7M35S- foi anterior, mas diziam que na guerra de 1939-45… há uma visita que recomendo a toda a gente e pode ser feita de forma virtual, a partir de nossa casa, que é ao Museu Digital
RR p1 de 7 aos 7M47S- da RTP. Tem material da rádio e da televisão. Está lá um gravador de fio de aço portátil. Tem microfone, auscultadores e dizia-se – na altura – aquela imagem do espião, podia usar
RR p1 de 7 aos 8M5S- um gravador daqueles no bolso. Lembra-me sempre o fio de pesca de nylon. Tinha um problema: se por acaso o fio de aço partisse, tinha que se dar um nó. E corresponde, nos dias
RR p1 de 7 aos 8M25S- de hoje, a um drop out. E esses foram os problemas que levaram à criação de um suporte que, em 1934, a BSF lançou. Portanto, quando foi da última guerra, já o gravador de fio de
RR p1 de 7 aos 8M38S- aço – que mais conhecido como profissional é o Webster – os alemães tinham. Porque a tecnologia, com o fim da guerra, foi disputada pelos americanos e pelos soviéticos de maneira
RR p1 de 7 aos 8M52S- a levarem os seus técnicos – na área do registo de imagem e de som e todos os outros segredos que sabemos. 09:02 – 11:31 – Apresentação do entrevistado
RR p1 de 7 aos 9M8S- FSS: Filipa, começa. FS: Então vamos começar. Estamos no Espaço Cultural do Cinema Europa, em Campo de Ourique, para entrevistar o Rui Remígio. Quem vai
RR p1 de 7 aos 9M17S- fazer a entrevista sou eu própria, Filipa Subtil, e o Francisco Sena Santos. Queremos agradecer a disponibilidade do Rui. Vamos começar por questões de natureza sociográfica.
RR p1 de 7 aos 9M33S- O nome completo, o nome pelo qual era conhecido, a data de nascimento, o local de nascimento, a escolaridade. RR: Eu chamo-me Rui Alberto da Silva Remígio.
RR p1 de 7 aos 9M49S- E como eu disse, por graça, numa pequena nota que vos enviei, nasci em 1945 porque a minha mãe mandou parar a guerra. O meu pai era militar e, de facto, como nasci em
RR p1 de 7 aos 10M4S- outubro, a guerra tinha acabado já. Fiz a minha escolaridade já em Portugal, no Continente, porque vim do Funchal onde os meus pais viveram doze anos. Tinha vivido antes nos Açores.
RR p1 de 7 aos 10M21S- Fui para Viseu, terra do meu pai. Mas os ares de Viseu eram muito fortes e eu não me dava. Sinceramente, é verdade. Os meus avós, da parte da minha mãe, viviam na Figueira da
RR p1 de 7 aos 10M38S- Foz. E eu, desde os cinco anos até aos sete, fui viver com os meus avós. E normalizou-se a minha adaptação ao clima. De temperado do Funchal, em termos de temperatura e do
RR p1 de 7 aos 10M54S- mar acima de tudo – ainda hoje, necessito de ver o mar todas as semanas, rio Tejo, Cascais, nem que seja para molhar o pé – há 33 anos vou todos os fins de semana à Costa de Caparica
RR p1 de 7 aos 11M10S- fazer duas horinhas a pé. Seja com os pés dentro de água, seja no paredão, o mar para mim é uma fonte de relaxamento, de prazer, soltar os olhos, o caminhar…
RR p1 de 7 aos 11M27S- 11:31 – 14:21 – Educação e carreira militar: entre a Escola Industrial e Comercial de Viseu e o ingresso no Regime de Infantaria nº 5 das Caldas da Rainha
RR p1 de 7 aos 11M30S- FSS: Fizeste o liceu na Figueira. RR: Não foi liceu. Foi Escola Industrial e Comercial, em Viseu. Fiz a escola primária, numa escola que se chamava então Magistério
RR p1 de 7 aos 11M44S- Primário, que tinha as escolas normais e as escolas dos que viriam a ser professores. Depois fiz o Secundário, e o quinto ano. Depois iniciei a secção preparatória para
RR p1 de 7 aos 12M1S- a Escola Industrial e concorri, como era hábito naquela altura, para aquele espaço que mediava entre o fim do quinto ano e a entrada para a tropa. E aos dezoito anos, concorri para
RR p1 de 7 aos 12M18S- mestre, mais concretamente contramestre – eu seria provisório – de oficinas e trabalhos manuais. Porque era a arte que eu tinha aprendido. A arte de trabalhar a madeira, o ferro…
RR p1 de 7 aos 12M40S- as tecnologias para trabalhar. Concorri para Santarém e os primeiros anos correram tão bem que o próprio diretor me convidou para voltar no segundo. No segundo a mesma coisa.
RR p1 de 7 aos 13M3S- E do segundo para o terceiro era o doutor Chambel e fiz. E no dia dos meus anos, quando fazia 21 anos, entrei para a tropa nas Caldas da Rainha.
RR p1 de 7 aos 13M19S- FSS: Infantaria. RR: Sim, o Regimento de Infantaria Nº 5. Fiz lá o início da minha carreira militar. E consegui, graças a apoios do Maia Loureiro
RR p1 de 7 aos 13M39S- e do conselho dele – porque fui o primeiro do curso que tinha a família da mãe, a irmã viúva de militar, o meu irmão estava na tropa em Coimbra – e eu fiz um requerimento
RR p1 de 7 aos 13M58S- ao Estado Maior do Exército para ir para Angola ao invés de ir para outra província ultramarina – como se chamava na altura. Fui para Angola. Em 1969 onde estive até 1971.
RR p1 de 7 aos 14M11S- A parte militar não foi do meu gosto. Porque tive muitos colegas que morreram e outros vieram afetados. 14:21 – 18:14 – De Luanda a Dembos: o início
RR p1 de 7 aos 14M14S- das responsabilidades militares e as memórias do bombardeamento com Napalm FSS: Foste mesmo para terreno de combate? RR: Não. A minha especialidade não me permitia
RR p1 de 7 aos 14M28S- isso. Pronto. Eu fui feliz. Porque num batalhão, apenas um militar tinha especialidade. Eu era responsável pelo armamento e munições de um batalhão. Eram quatro companhias, sendo
RR p1 de 7 aos 14M41S- que uma delas era de comando e serviços. E eu dependia diretamente do capitão. Inspeção das armas, substituição das munições, treino do pessoal…
RR p1 de 7 aos 14M55S- FSS: Com base aonde? RR: Primeiro, no Grafanil [campo militar], em Luanda. Depois, logo ao fim de três meses, para a região dos Dembos [município da província
RR p1 de 7 aos 15M7S- do Bengo]. FSS: Zona crítica. RR: Onde estive três meses até ao Natal. E o comandante incumbiu-me de ir para Luanda
RR p1 de 7 aos 15M21S- fazer compra de géneros para o Natal. Mas os operacionais tinham ido para aquela zona, que era rica em café, e estávamos como que num fortim numa zona que tinha sido flagelada,
RR p1 de 7 aos 15M40S- em 1961. Como era uma zona rica em café, e o rio ficava confinava com a própria fazenda, a Maria Manuela, o comando militar resolveu construir um fortim para a passagem das viaturas
RR p1 de 7 aos 16M4S- militares para a zona mais a norte. E construiu-se essa base. Essa ponte. E instalou-se um pelotão como residente. Mas antes disso acontecer, tudo aquilo foi bombardeado com Napalm [mistura
RR p1 de 7 aos 16M22S- de Naftenato de alumínio e Palmitato de alumínio mono e di-hidroxilados]. Primeiro foram os bombardeiros, depois os jatos, depois foram lançados paraquedistas, fuzileiros… foi
RR p1 de 7 aos 16M36S- assim uma das maiores operações. Helicópteros a transportarem as forças mais operacionais de comandos, fuzileiros, a espalharem… e há um fenómeno que eu não gosto de falar
RR p1 de 7 aos 16M52S- dele, mas tenho que forçosamente que falar. Eu partilhava o quarto na fazenda Maria Manuela, que eram instalações em tijolo, com um militar responsável por projetar os filmes e as músicas
RR p1 de 7 aos 17M15S- para animação dos militares. Na sequência desse bombardeamento para a construção posterior do fortim no rio Dange, esse meu colega, esqueci o nome propositadamente, mas tenho a imagem
RR p1 de 7 aos 17M36S- dele, foi filmando tudo aquilo que era possível. E regressa com um troféu. Que pôs dentro de um frasco com álcool. Uma orelha de um ser humano africano que tinha sido vítima
RR p1 de 7 aos 17M54S- de queimaduras do ataque. E aquilo chocou-me e de que maneira. Foi forte demais. Mas não fui só eu que me apercebi disso. O próprio comando resolveu castigá-lo e enviá-lo para
RR p1 de 7 aos 18M10S- Luanda porque troféus de guerra daqueles não eram tolerados. 18:14 – 23:32 – A luta pela tentativa de escolarização num cenário de guerra
RR p1 de 7 aos 18M15S- RR: Ou seja, a zona era violenta e o ensino que na altura estava a ser desenvolvido, na sequência do novo catecismo, processos de aprendizagem com noção pedagógica, do sistema
RR p1 de 7 aos 18M31S- de letras que o sistema Braille permitia. E eu, como tinha experiência de dar aulas de oficina e trabalhos manuais, construí umas letras com areia do chão – não havia
RR p1 de 7 aos 18M47S- serradura -, embora houvesse cerca de 400 africanos negros que me faziam lembrar o romance A Selva do Ferreira de Castro porque o dinheiro que ganhavam gastavam sempre. E aqueles 400
RR p1 de 7 aos 19M22S- trabalhavam, saíam de manhã e regressavam à noite. Os militares não se envolviam nesse
RR p1 de 7 aos 19M30S- espaço. Eram 400, não era coisa mínima. Nesse mesmo espaço, na fazenda Maria Manuela, foram apanhados filhos dos guerrilheiros. Mulheres e crianças naturalmente ficavam
RR p1 de 7 aos 19M52S- para trás. Ainda hoje, em qualquer situação de guerra, assim é. E eu tentei, porque tinha apoio de alguns colegas que partilhavam comigo princípios de solidariedade nestas situações,
RR p1 de 7 aos 20M6S- educá-los no sentido em que não podia dizer o A, E, I ou U. Por exemplo, o C corresponderia ao capim [plantas gramíneas e ciperáceas, forraginosas]. Todas as letras teriam de estar associadas à realidade angolana. E comecei muito bem, com meia dúzia. E ao fim de não
RR p1 de 7 aos 20M25S- mais de dois meses, fui proibido. Calcule-se bem: por um madeirense que era capelão do batalhão e foi dizer ao comandante. E o comandante suspendeu. Para mim, era um contentamento
RR p1 de 7 aos 20M42S- fazer algo em prol dos outros. FS: Qual foi a justificação que deram? RR: Dois dias depois, fui para uma tenda – assim daquelas de lona, militar – com lanternas
RR p1 de 7 aos 20M54S- militares. Estavam jovens a estudar, a ler. Calaram-se todos porque eu era graduado. Eram todos africanos. Um pelotão. São 27. É uma tenda enorme para levar 27 pessoas lá
RR p1 de 7 aos 21M14S- dentro. Quando entrei, perfilaram-se todos e disse “À vontade”. Como vi que estavam todos a estudar, no dia seguinte voltei lá com os bolsos cheios de cigarros. Maços de
RR p1 de 7 aos 21M27S- cigarros que, para nós, militares, eram comprados a metade do preço. E distribuí cigarros e partilhei o fumo também com eles. E a partir daí, andei uns dias – não mais do que uma
RR p1 de 7 aos 21M41S- semana – a ensiná-los. Porque havia uma regra do Exército Português: quem entrasse para a tropa e não tivesse a quarta classe, só sairia da tropa – só sairia do serviço militar
RR p1 de 7 aos 21M51S- — quando acabasse a quarta classe. Portanto, eles teriam muito que aprender – ou rapidamente desenvolver-se – para depois fazerem os exames. Eis senão quando também fui proibido.
RR p1 de 7 aos 22M3S- FSS: Qual era a razão? RR: Porque eu estava – é a minha leitura — a colocar-me, a ter uma iniciativa que não era de âmbito militar, estratégico, psicológico.
RR p1 de 7 aos 22M24S- Porque havia a ação psicológica, os militares e eu fazia aquilo. Por mim, tudo bem. FSS: Mas nunca chegaram a dar uma justificação. RR: Não, não. A razão é simples. Não.
RR p1 de 7 aos 22M34S- A razão que mais me doeu foi quando, ao fim do segundo ou terceiro dia, havia dois irmãos que eram gémeos. E eram esses dois com quem eu estava a aplicar-me mais porque eles faziam
RR p1 de 7 aos 22M48S- entre si a disputa da aprendizagem. E, portanto, mostrava aos dois a mesma coisa e, portanto, as questões similares. Foram separados: mandado um para fora da fazenda Maria Manuela – nunca
RR p1 de 7 aos 23M6S- mais soube, infelizmente a vida tem surpresas e um dia estava em Luanda e vieram os dois a correr. Foi a festa. Ou seja, num ambiente que nos é hostil – a própria guerra é por
RR p1 de 7 aos 23M24S- si só hostil -, eu não estava proibido de nada, mas as duas iniciativas que tentei não resultaram. E daí houve a frustração e, de repente, incumbiram-me de ir para Luanda.
RR p1 de 7 aos 23M40S- 23:32 – 31:15 – O início da paixão pela rádio e o choque cultural à chegada a Angola RR: “Ó Remígio, o melhor é ires para Luanda. Vais tentar fazer as compras que vem
RR p1 de 7 aos 23M45S- aí o Natal”. Mas como o pessoal que estava lá, nesse batalhão, nesse lugar, onde eu estava integrado – porque como fui em rendição individual substituir um militar do quadro,
RR p1 de 7 aos 23M57S- eu fui sozinho e voltei sozinho, mas ele já tinha um ano, era o Batalhão dos Impossíveis tinha sido formado em Santarém. Só os fui conhecer. Mas foi ótimo nesse aspeto. Fiz grandes amizades porque nestas situações criam-se grandes amizades. E então, só estive
RR p1 de 7 aos 24M21S- um ano com eles. FSS: Ouvias rádio nesse tempo? RR: Ouvia porque o meu grande amigo José Nóbrega, que era o responsável e era angolano,
RR p1 de 7 aos 24M32S- chamavam-lhe o Pipi das Meias Altas porque era muito sardento, tinha cabelo ruivo. E o Zé Nóbrega tinha um gravador com música em fita de ¼ de polegada que era um espetáculo.
RR p1 de 7 aos 24M49S- Porquê: porque ele era angolano, tinha feito serviço lá. FSS: Foi o teu primeiro contacto com a fita de gravação, com a fita de arrasto?
RR p1 de 7 aos 25M2S- RR: Foi. E era ele que projetava os filmes. À noite, quando havia um lençol esticado, um ecrã, o pessoal todo com uma cerveja no meio das pernas… a partir daí, havia a
RR p1 de 7 aos 25M17S- gargalhada. A maior parte dos filmes era com intenção de divertir. Alguns tinham um pouco de musicalidade, outros histórias…
cine zala
FSS: Comédia italiana. E tu mexias nesse
RR p1 de 7 aos 25M33S- gravador? RR: Não, mas ficava encantado. FS: Ficava fascinado. RR: Fascinado. Mas aquilo que sempre me seduziu
RR p1 de 7 aos 25M42S- foi a comunicação. Porquê? Reparem: eu quando vou para Angola, o que é que nós gostávamos de ouvir? Os desafios de futebol. FS: Foi para Angola em que ano?
RR p1 de 7 aos 25M58S- RR: 1969. Em janeiro. A nove de janeiro de 1969. De barco Vera Cruz, nove dias, rota secreta ao largo do Senegal. A capital é Dakar, creio eu. Passava-se do Vera Cruz por outros barcos, com as luzes todas apagadas durante a noite. Porque o Senegal não apoiava
RR p1 de 7 aos 26M24S- o comportamento nem a política dos portugueses. E apoiava os movimentos de libertação. A minha chegada a Angola é outro momento de sofrimento porque a temperatura não tem nada
RR p1 de 7 aos 26M41S- a ver com as temperaturas a que eu estava habituado. E o calor, em Luanda, é um grau de humidade elevadíssimo. Descobri uma coisa. Deixei de usar relógio com nylon, que havia,
RR p1 de 7 aos 26M54S- que as pulseiras tinham de ser antialérgicas. Porque acumulavam-se pequenas gotas de água nas zonas da pulseira do relógio, por exemplo. Passei a ter que usar roupa de algodão e
RR p1 de 7 aos 27M8S- não de lycra. E meias sem fibras e por aí fora. O choque é que eu tinha um grande amigo e meu antigo vizinho – que tinha a mesma especialidade do que eu, de Viseu, que me
RR p1 de 7 aos 27M21S- foi esperar. Até ao fim do dia, eu pude – à exceção das meias e dos sapatos – pôr umas calças cinzentas, uma camisa cor de rosa, pormenores que nunca mais esqueço. Porque
RR p1 de 7 aos 27M39S- fui almoçar a um restaurante e comer a boa carne. A chamada carne palanca. E, portanto, ele estava quase no fim. Nós, os mais novos, éramos chamados os maçaricos. Porque falávamos
RR p1 de 7 aos 27M55S- muito. E eles eram os VCC – Velhinhos Como o Caraças. A expressão era essa com um palavrão no fim. Então, fomos almoçar, ele encarrega-se de pedir a carne. Bife, batatas fritas. Pede
RR p1 de 7 aos 28M10S- um canhangulo. Era uma arma primária usada pelos movimentos de libertação. E veio um copo grande de cerveja. O calor era enorme, eu começo a beber cerveja e a pior coisa
RR p1 de 7 aos 28M27S- que podemos fazer quando temos calor é beber coisas frescas. Porque ainda transpiramos mais. O organismo reage. E quando dou por mim… e depois, vejo ele a agarrar num frasco.
RR p1 de 7 aos 28M36S- Porque eu era o menino que ia para uma nova sociedade, para novos hábitos. De Viseu, do quartel, Santarém, por aí fora. Muito cru para esta realidade. África. Ainda nem
RR p1 de 7 aos 28M52S- sequer tinha visto nenhum elemento da minha família. Porque eles estavam em Sá da Bandeira, mais a sul. E um primo que estava a trabalhar na hora da chegada e só depois, no fim de
RR p1 de 7 aos 29M2S- semana seguinte, me foi buscar. E vejo ele polvilhar todas as batatas, a carne, com gindungo [piripiri muito picante]. “Epá, isto faz bem porque combate o paludismo, faz ver tudo,
RR p1 de 7 aos 29M22S- aumenta”. Pronto, histórias daquela idade, dos 23 anos. Eu de repente dou por mim… Eu estava todo encharcado, o meu cabelo é assim fininho, não se pode usar grande, mas
RR p1 de 7 aos 29M42S- senti que o cabelo estava todo colado. Corria um suor, transpiração por todo o lado. Sentia os braços todos molhados. Comecei a ver a camisa que estava de mangas compridas, toda
RR p1 de 7 aos 29M56S- molhada. E olho para as calças, que eram finas, terylene, usava-se na altura… esta zona aqui dos joelhos toda molhada. Parecia um burro de carga. Senti-me mal. Acabei de
RR p1 de 7 aos 30M12S- almoçar e diz ele “Mais cinco minutos com o calor que está, estás seco”. Ao fim do dia, o transporte que eu tive, de uma boleia que pedi – estava fardado está – havia movimento.
RR p1 de 7 aos 30M27S- Carros militares, jipes, constantemente. Bastava levantar um braço a um militar. Todos davam boleia a todos. E pára um jipe rigorosamente com o capelão madeirense que mais tarde veio
RR p1 de 7 aos 30M47S- a ter o tal comportamento. “Onde é que vais, ó maçarico?”. “Vou ver a família”. “Para onde é que vais?” e eu: “Para o 2830”. “Vais para o nosso batalhão”.
RR p1 de 7 aos 31M0S- “Vá, vou-te apresentar”. No fundo, Deus escreve torto por linhas tortas e não por linhas direitas. Foi o caso. Angola, 1969 a 1971.
RR p1 de 7 aos 31M10S- 31:15 – 34:30 – Ascensão na carreira militar em Luanda FSS: Regressaste em 1971. RR: Sim. Mas, antes de regressar em 1971,
RR p1 de 7 aos 31M17S- como tinha família… os militares vinham todos a Portugal passar o “puto”. O “puto” era o Portugal pequenino. Passar as suas férias, os seus trinta dias e eu, como tinha a família
RR p1 de 7 aos 31M31S- toda lá, mãe, dois irmãos e também um tio meu, fiquei por lá. A gozar as minhas férias. Estava, entretanto, em Luanda, porque ao fim de um ano, o Batalhão de Cavalaria
RR p1 de 7 aos 31M49S- 2830 – Os Impossíveis com quem eu estava e tinha estado – terminou a sua comissão. Eles já tinham um ano quando fui para lá, passou mais um ano e regressaram a Portugal.
RR p1 de 7 aos 32M2S- Custou bastante. As peripécias, as amizades ficam para toda a vida. Mas eu sou colocado no agrupamento de serviço de material chamado ASMA. Que é o grande quartel onde só reparam
RR p1 de 7 aos 32M15S- as armas, os automóveis e tudo assim designado. Conheci lá um capitão, que era cinco estrelas, o único militar de carreira que saía fora do lugar, não é. E vou trabalhar com ele,
RR p1 de 7 aos 32M38S- com a função de devolver aos militares que terminavam o serviço militar as suas cadernetas. Ao fim de oito dias, dá-me dinheiro e eu era um graduado, um cabo, com um jipe às
RR p1 de 7 aos 32M54S- ordens para quando precisasse de ir aos correios ou coisa parecida. O resto era estar sentado à secretária com a papelada, a tratar da parte burocrática. Ao fim de oito dias, depois
RR p1 de 7 aos 33M6S- de me ter dado dinheiro, “Vais aos correios, fazes isto e aquilo”. E ele pergunta-me: “Ó Remígio, tu não precisas de dinheiro?”. E eu: “Não”. E ele: “O que estás a
RR p1 de 7 aos 33M16S- fazer? Não é para mandar? Não estou a perceber”. “Se são urgentes, eu mando pela TAP. Se não são urgentes, mando pela Força Aérea Portuguesa. A TAP paga, a FAP não paga nada”
RR p1 de 7 aos 33M36S- e ele: “Olha, é bem visto”. Estava um primeiro-sargento ao lado, que fazia essa função, não gostou nada do que ouviu. Porque o capitão nesse dia chegou à conclusão
RR p1 de 7 aos 33M51S- de que esse primeiro-sargento andava a ficar com o dinheiro porque não fazia a mesma coisa. Mas, logo na semana seguinte: “Então, não pode ser, homem”. Eu tinha feito isso [envios
RR p1 de 7 aos 34M2S- sem pagamento] há tanto tempo. Convidou o capitão e o primeiro-sargento a virem à minha secretária. E a lista dos últimos envios está aqui. Assim, assim, FAP e TAP.
RR p1 de 7 aos 34M15S- Ou seja, era possível alterar a designação FAP e TAP e acrescentar o dinheiro à frente. E o capitão ia dando o dinheiro. E, de repente, eu não precisava…
RR p1 de 7 aos 34M27S- 34:30 – 39:11 – O esforço para conjugar a carreira militar com a finalização do Ensino Secundário RR: Entretanto, eu estava bem e tinha tempo.
RR p1 de 7 aos 34M34S- Então, comecei a estudar as duas disciplinas que me faltavam. Estudei História para terminar a secção preparatória para entrar para o Instituto Industrial.
RR p1 de 7 aos 34M45S- FS: Isto ainda em Angola. RR: Em Luanda mesmo, exato. Fiz História à vontade. Tinha para aí duas ou três semanas de iniciação a Inglês com uma jovem amiga
RR p1 de 7 aos 34M59S- de família. Que estava no último ano do liceu e que me estava a ensinar. Houve lágrimas quando me chegaram a dizer que tinha de ir para Zala. Zala era o pior sítio para onde
RR p1 de 7 aos 35M10S- alguém podia ir. De avião ou coluna blindada. E eu fui. E quando lá cheguei, quem estava à frente desse batalhão – do chamado Batalhão de Caçadores, esse batalhão 1888 ou 1889
RR p1 de 7 aos 35M29S- salvo erro – e era um tenente-coronel que já tinha sido cabo na I Guerra de 1914-18. Depois ficou lá como Presidente da Câmara, algures em Benguela ou coisa do género. Já
RR p1 de 7 aos 35M45S- me tinha vindo embora depois. E fui-me apresentar a ele e ele gostava muito de andar com uma enxada na mão. Havia uns suínos, chamados porcos, para o cultivo, estranhamente… nós,
RR p1 de 7 aos 36M2S- nestas zonas de combate e de guerra, ninguém usava dragonas. Não se distinguia um alferes de um capitão para não dar nas vistas. Portanto, quando me dizem “Vosso comandante”, lá
RR p1 de 7 aos 36M16S- me perfilei, apresentei-me… “Ah, e tal, o que é que fazes?” e eu: “Tenho um exame para fazer. Já fiz História, só me falta Inglês. Tenho média de 16. Se tirar um 10,
RR p1 de 7 aos 36M29S- fico com média de 14”. “O professor [referência a Rui Remígio] está autorizado por mim. Quando quiser ir a Luanda, vai a Luanda. Porque vai dar o exemplo a esta rapaziada toda. Vai
RR p1 de 7 aos 36M42S- pôr a rapaziada toda a estudar”. Isto é factual. Ao fim de três meses fui a Luanda, fui fardado e chumbei. O único exame em que chumbei na minha vida. Dois meses depois,
RR p1 de 7 aos 37M0S- voltei, sem ir fardado, e tive 12. Fiz a parte rudimentar, aqueles cadernos de exercícios onde se aprende algumas frasezinhas. Voltei… Ah, mas antes de terminar, em 1971, ainda
RR p1 de 7 aos 37M14S- fui a Maquela do Zombo… faltavam 25 dias para terminar e a zona onde fui entregar material deteriorado… fui substituir, assim é que é. E os sapadores, os fulanos que tratam
RR p1 de 7 aos 37M33S- da colocação de armadilhas e desbravam os trilhos que estejam armadilhados, fomos todos colocar uma quantidade de minas, balas, que estavam deteriorados, que não serviam. Rebentaram
RR p1 de 7 aos 37M47S- aquilo à distância e foi um grande estardalhaço. Assustou quem estivesse por perto, mas fui muito material. E eu sou incumbido de ir ver desse material. Para isso tinha que ir a Negaje,
RR p1 de 7 aos 38M5S- que era uma pista numa zona soterrada… esta outra onde eu estava, em Zala, era só para pequenos aviões. Levavam correio e, às vezes, uns peixinhos que nós encomendávamos. Mas
RR p1 de 7 aos 38M29S- só para dizer que essa estadia em Zala termina com uma passagem, de todo o batalhão, por Maquela do Zombo. Mas quando eu chego a Zala, saído de Luanda, fui encontrar só homens.
RR p1 de 7 aos 38M48S- Ao fim de 16 meses, estavam ali e não sabiam o que era nada senão homens. E um dia a mulher do segundo-comandante, foi lá de avião militar. Vocês não calculam a festa que foi. É uma
RR p1 de 7 aos 39M8S- constatação do comportamento das pessoas. 39:11 – 42:37 – Relato dos últimos dias na Guerra Colonial FSS: O Movimento Nacional Feminino não aparecia
RR p1 de 7 aos 39M16S- nessas coisas? RR: Não. O Movimento Nacional Feminino, em Luanda, distribuía as coisas. Pacotes de cigarros e umas coisinhas mais. Isqueiros
RR p1 de 7 aos 39M26S- e coisas assim parecidas. Portanto, antes de terminar a minha comissão, esses últimos nove meses que estive em Zala… foi para não desejar mais, do piorio. Mas eu não
RR p1 de 7 aos 39M42S- gostava de falar muito da guerra. Prefiro falar da parte seguinte. Seguimos para Maquela do Zombo os tais 25 dias. Mas tive de ir a Namugongo. Já cantavam o Manuel Alegre.
RR p1 de 7 aos 39M58S- O Vítor Reis tinha uma viola e parecia o Zeca Afonso a cantar. Tinha os oculozinhos e tudo. Até um dia, o segundo-comandante disse, “Mas que festa é esta!?”. Viu-nos todos sentados
RR p1 de 7 aos 40M9S- no chão. Soldados, alferes… achou muito estranho aquilo. “Acho bem que comecem a mudar de repertório” [versos de Recado a Lisboa]. No fundo, “Passa por mim no Rossio
RR p1 de 7 aos 40M28S- / E leva-lhe o meu olhar”. Porque todos queríamos vir vivos. A maior parte de nós tinha esse receio. Falo em Maquela de Zombo porquê: porque saímos do quartel a caminho
RR p1 de 7 aos 40M57S- de  Nambuangongo, foi a primeira vez que vivi uma emboscada. Saímos às oito e, às oito e meia, estávamos debaixo de fogo. Nunca me tinha acontecido.
a caminho de Maquela 
RR p1 de 7 aos 41M13S- Tinha assistido a situações descritas, corpos rebentados e mortos perto de mim, e foram 17 durante esses dois anos… assisti à perda de vida para além dos feridos. O meu primeiro instinto foi: faltam 25 dias
RR p1 de 7 aos 41M31S- para ir embora. Tinha na cabeça que vinha embora para Portugal. Uma pedra enorme. Atrás desta pedra, só disparo se vierem para me matar. Isto é factual, é verídico. Mais
RR p1 de 7 aos 41M49S- tarde, quando entrei na Emissora Nacional, a Celeste – uma grande amiga – foi ela que me acompanhou ao engenheiro Artur Silva, perguntou “Como é que o menino vem aqui ter e marca
RR p1 de 7 aos 42M9S- entrevista?” e eu: “Uma coisa eu garanto: já fiz a tropa, vim de Angola, não matei ninguém. Ganhava 3200 escudos. E não matei ninguém. E dei aulas de oficina de trabalhos
RR p1 de 7 aos 42M31S- manuais antes de ir para a tropa. E agora estou vivo e quero trabalhar”.
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