José Pote Magriço – Parte 21 de 27

Entrevistado por Paulo Barbosa – Registado por Cláudia Figueiredo em Lisboa 11 Julho de 2017.
1968 com 18 e o serviço militar obrigatório.

0:00:03.900
P Barbosa— Então, hoje é dia 25 de julho de 2017, estamos outra vez no estúdio da Escola Superior de Comunicação Social, para fazer a segunda parte da entrevista ao engenheiro Pote Magriço.
0:00:19.610
JP Magriço— Sr. Pote Magriço, obrigado por estar cá um segundo dia, desculpe lá o incómodo, mas ficaram aqui umas quantas pontas que convinha só a gente puxar aqui estes assuntos e dois desses assuntos têm a ver com coisas ainda antes das tais avaliações globais da carreira.
0:00:33.110
JP Magriço— À memória, sim.
0:00:40.330
P Barbosa— 1968 tinha 18 anos e em princípio, deve ter sido chamado para a tropa. Como é que foi então esse processo de ir ou não ir, ou como é que conseguiu não ir à tropa em 1968?
0:00:51.050
JP Magriço— Em 1968, portanto, corriam ainda as seleções dos mancebos, que era assim que se selecionava, e portanto, havia um sorteio também que era uma designação da época, é, como se tivéssemos a sorte de ser mobilizados para o serviço militar. E, portanto, eu fui apurado na altura, apesar de ter alguma condição de deficiência não não escapei à situação, e estive a aguardar depois em 1971 a entrada para um treino, na altura havia guerra, não é, portanto. E era cada vez mais difícil escapar a esta malha de seleção. O que me aconteceu foi em 1971, portanto, fui chamado para incorporar.
0:01:40.960
P Barbosa— Já estava no IMAVE?
0:01:48.920
JP Magriço— Na altura ainda não estava no IMAVE, portanto, o decorrer e a entrada no IMAVE foi um período de quase imediato. Vou dizer que nos finais de setembro ou outubro, ou os primeiros dias de outubro, deu-se a incorporação e, portanto, essa incorporação foi num quartel. Era na época era assim, para aprender e para ser instruído de certa forma para a utilização militar.
0:02:20.959
P Barbosa— E foi para recruta, no fundo?
0:02:20.959
JP Magriço— Era recruta que se operava nessa altura, e durante esse período eu vivi uma situação diferente da que era habitual. Não tinha preparação teatral suficiente para manter aquela situação. É, eu como tinha alguma deficiência na mão direita, considerei que não estaria eu pessoalmente apto a desempenhar as funções e os exercícios que eram exigidos e então andei numa situação um bocadinho diferente do que era habitual porque na época havia a possibilidade de recrutar, recrutar pessoal nesta situação para desempenhos de trabalhos de diferentes para desempenhos diferentes na tropa.
0:03:12.680
— Diferentes especialidades.
0:03:12.680
JP Magriço— Eram outras especialidades que permitiam. Mas como fui recrutado normalmente, fiquei sujeito a uma seleção, como todos os outros, não é. E, mas tive uma atitude um pouco diferente do que é habitual também. Porque foi quando foi na distribuição do fardamento, das armas, porque eram atribuídas na época alguns elementos necessários para instrução militar. Eu recusei a receber esses elementos. Foi um período difícil, porque havia uma pressão muito grande para que eu, mesmo na situação em que me encontrava, tivesse que aceitar de certa forma a farda.
0:04:06.290
P Barbosa— Mas invocou algum estatuto de consciência ou…
0:04:06.290
JP Magriço— A questão que eu propus foi A questão que eu propus foi a seguinte: eu estou aqui, fui mobilizado, é, para este desempenho, mas eu vou requerer junta médica porque quero que seja feita uma reavaliação da minha situação, embora tivesse passado no sorteio, até, no recrutamento inicial tivesse sido considerado apto para o desempenho das funções, mas entregaram-me uma arma em que eu não podia levar na mão direita era um bocadinho complicado. Porque minha mão tinha menos, tinha uma certa debilidade e não tinha possibilidade de segurar a arma como se fazia a instrução militar. E não era só isso também. Havia uma certa forma de posição que eu tinha assumido relativamente ao peso do próprio Exército, não é, porque queria manifestar o meu desacordo. E fiz um não, fiz um pedido da junta, portanto, que era necessário, e insisti que essa junta deveria decorrer durante o período da recruta, durante o período de treino necessário para… não era de imediato, não é, porque eu sei que essas coisas levavam algum certo tempo a serem determinadas e conseguidas. E assim foi. Posso revelar algumas coisas que aconteceram, por exemplo, os soldados normais, os outros recrutas meus semelhantes iam fardados, iam fazer exercícios fardados, correr, aquelas coisas, exercícios físicos que eram necessários e eu andava com o fato, que era o único fato que tinha levado, cinzento de riscas brancas. o que, de certa forma, destoava um pouco no pelotão. Destoava muito pouco, necessariamente, o meu filho de certeza é que ia no compasso certo. Também levado, também tinha os sapatos especiais, isto é um bocadinho apalhaçado, mas eu levava uns sapatos com pele de crocodilo, e marchava com os mesmos sapatos, porque não dava jeito nenhum andar de fato cinzento e com botas de tropa. Embora tivessem sido atribuídas as botas da tropa, naturalmente. Não só que todo o fardamento era para ser usado, mas como eu recusei a ser, a usá-lo, nem sequer fiz o levantamento dele, portanto, quando era necessário fazer as marchas, aqueles exercícios necessários para preparar as pessoas para o desempenho que se previa, que era isto ser mobilizado para a guerra. Eu andei assim durante 15 dias. A fazer os mesmos exercícios, não fazia aqueles que era necessário a atividade da mão, porque aí não havia hipótese, e em vez de andar com a G3, andava com uma mouser. E isto dava disparates, porque a apresentação de armas, por exemplo, que era um exercício que se tinha que fazer, eu fazia-o, na medida do possível, mas fazia-o, enquanto toda gente fazia com a G3, fazia os movimentos próprios da G3, eu fazia com a mouser. Portanto, aquilo não… destoava totalmente. E também fazia outra coisa. E fiz outra coisa. Diariamente, quando se fazia a alvorada, portanto, toda a gente se levantava e eu era logo o primeiro a levantar-me, preparava-me, vestia-me com o fato, que era a única coisa que eu tinha na altura e apresentava-me aos serviços médicos da quartel. Isto era em Leiria, na altura. E o RI4, o Regimento da Infantaria 4, creio eu que era nome, eu nunca fiquei com essas memórias muito vivas, mas creio que foi isso. E aí apresentava-me diariamente, a aguardar a vinda do médico, havia médico lá, e eu lhe perguntava diariamente o que que se tava a passar com o meu pedido porque já se passaram dois ou três dias e ainda não deram resposta. E assim tive lá durante 15 dias. Ao fim de 15 dias, havia a necessidade de as pessoas irem à casa, porque já estavam necessitados de de suprir as saudades que tinham da família e os que podiam, claro, foram para casa. Eu não fui. Porque como não tinha recebido o fardamento, não poderia sair do quartel. Então foi ali, fiquei retido e comecei a sentir-me retido dentro do quartel, porque não poderia sair sem fazer o levantamento dos materiais que me eram atribuídos.
0:08:59.470
P Barbosa— Portanto, o soldado só pode sair à rua se for fardado.
0:09:04.270
JP Magriço— Só pode sair se for fardado. Pronto, se for fardado ou se fosse de fim de semana pra casa etc. Funcionou, de certa maneira, como uma pequeninha penalização. Mas eu também não vê isso muito…. isso para mim também não era muito importante. Era importante e a insistência que eu fiz, foi, ter a garantia de que me iam reavaliar a situação da da aptidão necessária para fazer o desempenho que se quisesse. Nessa altura foi assim que se passou. Pronto, é uma história relativamente breve, até que um dia, num dia aconteceu tudo. Fui chamado, foi marcado pra Tomar uma junta médica, em que eu deveria comparecer muito cedo, por volta das 10 da manhã, portanto, eu estava em Leiria tinha que me deslocar, fui lá nessa situação e recebi a farda. Porque era a única maneira de eu poder me apresentar, recebi tudo o que era necessário, entregaram-me alguns materiais necessários para o desempenho. A arma já tinha recebido, mas era a mouser, não é, mas isso não tinha outra forma de guardar etc, não tinha problemas. Agora, para ir apresentar-me perante a junta médica, acedi vestir a farda. E vesti a farda por um dia. Recebi a farda, vesti, desloquei-me de autocarro, na altura, camioneta, para, de Leiria para Tomar. E a junta estava reunida. Eu apresentei-me normalmente perante os médicos, que suponho que eram militares de algum nível superior, e eles tiveram a reavaliar a situação. E por volta do meio-dia e meia hora já tinha, de certa forma, o veredito de que havia a possibilidade de se passar à disponibilidade. E foi assim que se passou. É claro que esta história tem um conjunto de pormenores que seriam longos para descrever, mas na forma mais ou menos resumida foi isto. E nessa tarde, depois de almoçar ainda, regressei de novo à Leiria, portanto, foi no dia em que aconteceu tudo, eu regressei à Leiria, fiz a entrega do espólio, ou seja, reentreguei todo o material que tinha disponível e por volta das quatro e meia da tarde estava apto a tomar outro autocarro em direção à minha terra.
0:11:43.510
P Barbosa— Mas então tudo isso deve a uma posição tipo moral contra a guerra?
0:11:47.290
JP Magriço— E sei, eu eu tinha assumido posições contrárias à guerra. Portanto, eu tinha alguma coerência também, não fui, levado ao ponto de ter que abandonar o país, porque estava em, em contrariedade com em contradição não entrei em contradição direta. Mas a verdade é que eu não estava de acordo com a guerra na época, como muita gente da minha geração não estava. Alguns tiveram a opção de saírem do país etc. Eu não saí do país. Eu quis cá estar dentro, e tentar, dento das minhas possibilidades, dado com minha situação diferenciada também tentar que não fosse sujeito a esse período de… Isto foram por um período de 15 dias, até a primeira penalização, depois aguardei mais um tempo até o último dia, e foram 26 dias efetivos que eu tive no desempenho, e passei à disponibilidade temporária, que eles não, eles não, não era permanente, não era definitiva, nada dessas coisas, mas era uma disponibilidade que decorreu durante esse período e portanto foi… Esta história tem depois outros elementos, mas o que foi mais divertido, de certa forma, foi eu andar a marchar com o fato a riscas cinzentas. Não era um fato que eu parecesse prisioneiro, mas se na época se tivesse filmado isso dava uma cena de engraçada, pelo menos.
0:13:23.080
P Barbosa— Mas os sargentos, e a gente que dava a instrução não achava isso uma espécie de uma provocação?
0:13:33.430
JP Magriço— Era uma provocação, era mesmo uma provocação. E eu, é, quando falava com os meus superiores, que eram aqueles que estavam me dar a instrução, eram os furrieis, os cabos, etc., todas as pessoas que colaboravam, eu usei uma situação que eu vou descrever pela primeira vez. Eu não olhava nos olhos deles, é muito importante não olharmos nos olhos quando temos mais coisas a dizer. Eu olhava-lhes para as divisas. Eu olhei sempre para as divisas, eles sobre os ombros tinham as divisas e eu quando falava olhava para as divisas. Eles sentiam-se um bocadinho tolhidos, porque, por isso é que eu digo, isso tem muitos pormenores, mas eu não vou revelar todos. Porque eu não estava a falar com a pessoa que estava ali, porque senão eu olhava-lhe nos olhos. Eu estava a falar para a instituição. E o que a instituição é representada pela farda, e pelo exercício numa ação que se desenvolve, portanto eu olhava-os, para, quando falava, não estava a olhar para eles, e eles sentiam isso. Não estava a falar pra… estava a falar para a instituição e não para a pessoa que estava ali a representá-la.
0:14:52.900
P Barbosa— Então quer dizer que isso foi preparado muito tempo antes de entrar?
0:14:56.590
JP Magriço— Claro que eu tinha a preparação teatral antes, mas não vou revelar esses pormenores, agora aqui nesta cena está bem? Pronto, este é um episódio só relativo. Foram durante 26 dias em que, eu me comportei, dentro daquilo que era possível, portanto, quando havia exercícios que eu podia desemprenhar, fazia-os, que era andar, e não tinha nenhuma indisponibilidade. Mas quando havia exercícios que envolviam movimentos de mão com uma arma que eu não tinha possibilidade de segurar como deve ser, eu não queria correr o risco de deixar cair a arma, e por exemplo, ver um prejuízo para o exército português. E portanto foi assim que ocorreu durante esses tempos.
0:15:44.070
P Barbosa— Passagem pela tropa.
0:15:44.070
JP Magriço— Esta descrição que estou a fazer é assim um bocadinho, não é para ficar entre aspas, mas é para ter em atenção porque na época também se faziam, tomavam-se posições de uma forma não panfletária, mas atitudes diretas no comportamento, e eu sabia uma coisa: era muito importante que se tomasse posições. Eu já na época sabia que qualquer atitude e comportamento que nós desempenhamos tem reflexos no futuro sempre. É assim como hoje. Qualquer coisa que se diga, qualquer coisa que se faça, tem repercussões e as pessoas nem sabem o poder que têm enquanto podem mudar no presente tendo em atenção o conhecimento do passado. No presente, alterar o futuro. Mas isto é muito importante as pessoas terem esta descrição para saberem como é que se pode. Na época, temos que situar isto nas circunstâncias políticas e sociais que haviam na época. O que era possível. Portanto, sem ferir, sem ser violento.
0:16:50.110
P Barbosa— E sem desertar não é? Porque fugir do país pode ser um desertor não é?
0:16:50.110
JP Magriço— Sim, corríamos o risco, quem desertasse o exército, ou quem faltasse à chamada de recrutamento, depois de, na seleção ficava marcado de outra forma. No meu caso correu bem, naturalmente haverá outros casos que não correram tão bem. Bem neste sentido foi, estive no exército, efetivamente, 26 dias. Não sei é se cumpri todos os trâmites do DRM (refere-se ao RDM, Regulamento Disciplina Militar) mas, pronto, agora também tendo se passado este tempo penso que não vão pegar nesta questão e sujeitarem-me a um exercício violento para uma guerra qualquer que venha para ai.

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